sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Desilusão

imageDesilusão. Aquele sabor que paira na boca sem hora de partida. Por mais voltas que a vida dê, por mais que o nosso Norte dê cambalhotas, voltas sempre, desilusão. Quando me pareço esquecer que sequer existes, quando me esqueço de quando apareceste e de como partiste, assombras-me de novo. Outros rostos, outras histórias, o mesmo sabor amargo de pura desilusão.

Nada muda. Nunca muda. E outra e outra vez mo lembras. Como era bom que não voltasses, e que bom seria se nunca te tivesse conhecido. De cabeça baixa, olhar pregado ao chão, ouço-te a rir, sarcástica. Até quando…?

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Mudanças

Fixando o horizonte com um sorriso que, sendo tão raro, tanto prazer dá ver surgir no rosto, avanço confiante. Afinal de contas, o mundo à minha volta muda a cada passo. E, nervoso mas sem medo das voltas que a vida vai dar, caminho com entusiasmo.  image

Vendo-te pelo canto do olho, penso se alguma vez voltarei atrás. Mas fitando as aves que migram sem pensar duas vezes, deixo-me também levar pela candura do vento. Se alguma vez o meu vento soprar para o teu norte, voltar-nos-emos a ver. Até lá, voo sem rumo... mas com destino.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Clara

Clara cedo descobriu que era especial. Era ainda uma pequena criança quando se apercebeu do dom único que possuía: Clara criava Mundos.

Ao contrário dos seus amigos, ao contrário de todos que a rodeavam, Clara conseguia imaginar e materializar realidades, conseguia criar pessoas, conseguia erguer civilizações e tornar reais sentimentos e sentidos vindos dos recônditos cantos da sua pitoresca imaginação. Consigo, todos os dias, conviviam as mais mirabolantes criaturas e com um simples gesto Clara conseguia transportar-se para bem longe, para sítios onde o comum dos mortais jamais sonharia estar.

image Para Clara não existiam regras. Leis também não as haviam, não no sentido comummente dado ao termo, uma vez que as podia quebrar a seu bel-prazer. Até a Natureza, por outros tida como poderosa e inflexível, era nas suas mãos tão domável como um pobre cão esfomeado. Clara tinha em seu poder universos que coabitavam sem interagir com o Mundo exterior – o Mundo em que vivia e que os outros julgavam ser o único. Mas a natureza destes Mundos é incompatível, pelo que o simples facto de um existir invalidava logicamente a existência de outros que não se inserissem na mesma Ordem das coisas. Mas é de Clara que falamos. E para Clara impossibilidades são como grãos de areia numa praia – tão numerosos quanto desprezáveis pela pequenez que representam. O que é, afinal, um grão de areia para uma criadora de Mundos?

Os Mundos de Clara são tão fantásticos que cada paisagem, cada pedaço de terra ou céu que os enche e dá vida é tão diferente para quem os vê quanto os seus olhos dos de outros. Melhor dizendo, seriam diferentes, se Clara os desse a ver. Mal sonham os amigos, mal sonha o seu Mundo que tal dom existe, que alguém cria, que não transforma simplesmente, como desde sempre foram ensinados, como disse alguém que não conhecia, certamente, Clara. Por vezes perseguida por exércitos, outras conversando com Reis de terras distantes e exóticas, basta-lhe um gesto brusco e seco para, quando alguém aparece, fazer com que se tornem transparentes, com a luz a trespassá-los como ao ar, como ao nada. E, no entanto, estão sempre presentes, por vezes na imaginação de Clara, outras tantas também existindo de facto, escondidos apenas dos olhos de quem outros Mundos desconhece.

Por tudo isto, é impossível não olhar para Clara com admiração.

Afinal de contas, Clara escreve…

 

(Nota: Um texto escrito em Março, guardado na gaveta. Não resisti em pô-lo aqui...)

domingo, 16 de setembro de 2007

Efémero

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Rio-me, sem me conseguir controlar. A boca bem aberta num largo sorriso, irradio alegria de cada poro, de cada centímetro quadrado de pele. Ris-te comigo, com o mesmo entusiasmo incontrolável.

Como é bom rir!, e há quanto tempo não o fazia assim. Cúmplices, lembramo-nos do tempo que passou, dos pedaços de vida que já tivemos desde o fim. O que fizemos nós nesse tempo? Como pudemos viver sem sorrir?

Que interessa isso agora? Somos felizes! Voltamos a sorrir!

Somos felizes…

… não somos?

O sorriso encolhe. O riso acalma-se. Os meus olhos cravados nos teus, abate-se sobre nós uma neutralidade assustadora. Desviando os olhos -- cada par para seu lado --, ponderamos.

Não somos felizes…

sábado, 15 de setembro de 2007

Vazio

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Por vezes, rodeia-nos o vazio. Sem palavras, rendo-me.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

O dia em que ceguei

Num momento estava lá tudo. No seguinte, cruelmente e sem aviso, tudo se eclipsou, deixando apenas o negro. Como que enclausurado num quarto sem réstia de luz, só via que nada conseguia ver. Cegara… 

Em pânico, aos tropeções, gritava por ajuda, estrebuchava, dando por mim a cair sobre obstáculos que apareciam, manhosos, sem aviso. Por fim, imagesem forças – a de músculos e a de vontade –, deixei-me cair. Costas premidas contra o chão frio, um calafrio a percorrer as costas, forçava os olhos a abrirem-se, como se abertos não estivessem antes. Não sabia como reagir, perdido com uma vista que, indo à frente, não conseguia ver por onde seguia. Tremia enquanto esfregava a cara, coçando energicamente os olhos como se isso me livrasse daquele sofrimento, daquele mal. Gritei uma última vez, arranhando a garganta. Nem um eco como resposta… Relutante, fechei os olhos.

O vento assobiava leve lá fora, enquanto uma ténue aragem trespassava a sala de estar. A janela está aberta. Mentalmente, imaginava-a, com as suas cortinas brancas a esconder invejosamente o mar, bem longe no horizonte. Elevando a mão à minha frente, certifiquei-me novamente que estava cego. Não era apenas uma ilusão. Então, estiquei o braço e num gesto amplo agarrei o ar à minha frente, procurando algo com as mãos que tremiam, receosas. O sofá. Passava agora a mão pelas suas costas, vendo-o como nunca antes. Já não era a sua cor vermelha que gritava por atenção. Era a sua textura, aquele toque que jamais sentira. Como falava a sua pele… Com a outra mão apalpei a carpete. Nem parecia a mesma… Conseguia ouvir-me respirar, ofegante. E, como um aviso omnipresente, o pesado tiquetaque do relógio de pêndulo dava conta de si. Subitamente, a casa ganhava vida, emitindo sinais sem direcção, mensagens sem destinatário. Surpreendido, de olhos bem arregalados, sustive a respiração e deixei-me ficar a ouvir tudo aquilo, fascinado. O cheiro a maresia que entrava às lufadas lá de fora perfumava a sala de image uma forma inconfundível. E a cada relevo novo que se cruzava com a ponta dos meus recém-nascidos dedos, a cada melodia escondida que me aliciava, sentia-me menos cego.

Quando me pus em pé, de braços bem abertos como uma estátua do Rio que provavelmente não voltaria a ver, esbocei um sorriso que não tardou se fez gargalhada, e que se transformou em lágrimas da mais perfeita alegria. Pequenas gotas acariciavam tão carinhosamente o rosto, fazendo o chão ligeiramente húmido debaixo da planta dos meus pés, agora descalços. Tão numerosos aqueles quadros, tantos ao mesmo tempo! Numa orgia de sensações, quase me esquecia de que não via, tal era a imagem, tão bela, tão nítida e surrealista que tinha daquela casa que nunca antes ouvira falar. Como num quadro de Dali, os relógios pareciam torcer-se, as formas contorcendo-se em exercícios do mais puro deslumbre.

Vendo a cada momento novas figuras desenharem-se na tela dos meus sentidos, absorvi tudo como uma criança que explora o mundo pela primeiríssima vez, sem saber o que esperar do que o rodeia. Nunca me esquecerei do dia em que ceguei…

 

terça-feira, 11 de setembro de 2007

A Tempestade e Eu

A chuva bate no vidro do carro. Repicando ao embater, deixando linhas enquanto desliza em direcção ao chão que se move célere sob as rodas, a água chama por mim. Adormecido em pensamentos a que não me consigo alhear, reparo. No fundo, o mundo passa a correr. Tudo parece cinzento, tristonho, como eu.

Um relâmpago. O clarão anuncia o que o trovão confirma. A terra treme, e os céus assustados soltam mais chuva. Não se vê vivalma. A Natureza refugiou-se, tal como o Homem. Apenas eu imagedeambulo sozinho, em direcção à tempestade. Envolto naquele clima, quase que podia jurar que a Terra chora comigo. Sorrindo, fecho por momentos os olhos, sentindo uma plena união. Não estou só.

O velocímetro assusta-se quando acelero a fundo. Determinado, o ponteiro sobe. A chuva embate sem piedade no pára-brisas. Enquanto sinto adrenalina ser injectada no sangue, sinto-me solto, livre. As rodas parecem asas e o chão tão leve como o ar que me enche os pulmões. Agarro o volante com mais força, enquanto o carro trepida. O motor ruge, enquanto me faz cortar o ar, deslizando em frente. Cada vez mais perto, a tempestade sente-me chegar.

Apetece-me pedir-lhe leva-me contigo!!, mas com certeza não me ouviria. Ela sabe-o, de qualquer forma. Os seus ventos acolhem-me, a sua chuva chama-me. E eu sigo. Como se algo me forçasse a fazê-lo, o meu corpo responde por si, sem hesitação. E como um sereno espectador, deixo tudo como está. Apenas contemplo. Já falta pouco, digo para o temporal que se estende à minha frente. Estou aqui.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Murmúrios da cidade

À medida que o Sol desaparece por entre os prédios, apodera-se da cidade a obscuridade. A luz, sem forças, deixa de penetrar em todos os recantos, apagando-se pouco a pouco. Na selva de betão, os carros acumulam-se em longas filas. Dentro deles, todo o tipo de gente, menos o que interessa: gente serena, bem-educada, civilizada. As marcas de calor que se levantam do asfalto são avisos da cidade que já não sabe respirar. Como uma marcha fúnebre, lenta mas certa, a cidade caminha a cada segundo para o caos. image

Agora que os postes de iluminação se acendem, que os néones nos encandeiam com as suas cores berrantes que destoam com a naturalidade da noite, prostitutas aparecem espaçadamente nos passeios da metrópole. Além, vê-se já um sem-abrigo, enrolado nas suas sujas folhas de jornal que alguém deitara fora como lixo, minutos antes. Droga circulava pontualmente, fazendo voar dinheiro que muitas vezes não se tinha. E, não muito longe, soava o alarme de um carro. Vidros partidos, dispersos no chão. O rádio já era! Vultos fugiam como setas até se perderem de vista. Imunda, a cidade ia adormecendo.

As fachadas negras que já ninguém limpava viam o declínio da urbe. Mascaradas pela poluição de anos, a sua beleza minada pelo desleixo de quem vive a sua vida com o pouco tempo que tem, lembram-se apenas vagamente da cidade de outros tempos. Mas as memórias valem o que valem. O tempo tem uma estranha forma de nos impor realidades, permitindo-nos contudo vislumbres do passado… Nas janelas das casas já não se viam estrelas como noutros tempos. Não por que, como pensa o Homem, a cidade brilha como mil e uma estrelas, ofuscando as que tentam competir lá do alto. Não. É antes porque as estrelas partiram. Fugiram de nós que, cegos, somos incapazes de ver a miséria em que caímos.

A lua cheia, conferindo um contorno azulado às formas da rua, adensava o manto arrepiante que se estendia pelos becos e ruelas do coração despedaçado da cidade, enquanto um grupo de rapazes munidos de latas de tinta soltavam as amarras à imaginação e davam outra cor a uma parede velha, meio escondida nos labirínticos caminhos da zona. 

imageE assim se passava a noite, num silêncio perturbador, como se algum segredo estivesse, a qualquer momento, para ser desvendado. Tudo escutava, (até as paredes,) com o ouvido atrás da porta ou de sentidos bem acesos, prestando toda a atenção. Mas, em vez de um murmúrio, ouviu-se o dia, a manhã a despontar, a luz a aproximar-se. Como um aguaceiro que penteia a terra, deixando no ar um odor a mudança, o tímido Sol da alvorada abanou aquela gente. Como morcegos, todos saíam das ruas, escondendo-se dos olhos de quem estivera, até então, com eles cerrados, sonhando com dias melhores e trocando palavras com o travesseiro. Estes últimos iam saindo agora, um a um, como que obedecendo a uma lista de presença, expressamente feita para povoar o dia. A Lua apressava-se para ver a outra metade do globo enquanto o Sol, sempre simpático, se assegurava de que tudo estava igual ali, naquele pontinho do mapa.

E assim corria a vida, no eterno contraste da noite e do dia, do preto e do branco, do certo e do errado, que tantas vezes se perdia em si mesmo, trocando as voltas a tudo e todos e deixando-nos sem saber se aquele preto era mais claro que o outro branco, ou se morrer não será mais certo que viver. Oh, mas não é tempo de pensar nisso! Afinal, o Sol ainda sorri para nós…

Olhos nos olhos

Deitados na cama, a rapariga dos olhos rasgados e o rapaz que sonhava contemplavam-se. As mãos dadas, com força à qual nem o maior dos números fazia justiça, contemplavam-se, enamorados.

Olhavam olhos nos olhos, como que a espreitar para a alma de cada um. O rapaz que sonhava, admirado, nunca sonhara ser possível os olhos de duas pessoas verem o mesmo… Ambos sentiam o mesmo: perfeição. Se o mundo acabasse ali – e bem podia acabar! –, estariam felizes como nunca antes. Porque estavam juntos. Porque os seus olhos de cores diferentes viam o mesmo mundo.

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- Amanhã, também isto será apenas uma memória… – desabafou, por fim, a rapariga dos olhos rasgados, tentando disfarçar o sorriso triste que se camuflava no rosto. Inundada de felicidade, o coração a batucar forte e com ritmo inconstante – como que a queixar-se que aquele peito, aquele onde batia, não conseguia comportar um sentimento tão colossal – sabia contudo que a perfeição era assim mesmo, efémera.

O rapaz que sonhava tentou desmentir, mas faltou-lhe a vontade para dizer fosse o que fosse. Pararam os dois, fitando-se. Como era bom olhar nos olhos dela. Como era bom olhar nos olhos dele…

Foi então, subitamente, como um relâmpago, não mais do que um momento, que tudo parou: o quarto à sua volta pareceu ter sido levado para longe; lá fora, os pássaros pararam de cantar e ficaram à escuta, vendo voar quem não precisava de asas; a Terra, apercebendo-se, parou de rodar, atenta; um cometa esqueceu-se de cair!; o Sol, gigante, pareceu eclipsar-se com a doçura das palavras, e corou ao calor e ternura dos dois meninos – tudo para escutar a coisa mais importante do mundo:

“Amo-te…”

domingo, 9 de setembro de 2007

Perfeição

Homem de Vitruvio

"A perfeição atinge-se não quando nada mais há a acrescentar, mas quando nada mais há a retirar."

Antoine De Saint-Exupery

(autor de O Principezinho)

Foto: Homem de Vitrúvio de Leonardo Da Vinci.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Casa vazia

Quanto tempo se passou? Já nem me consigo lembrar… Tantos dias atrás de dias, tantas voltas de relógio. O tempo sobrepõe-se ao tempo, apagando o passado, esborratando as lembranças. Olho para o quarto. Não estás lá. Onde foste? Porque fugiste?

image As portas não batem, pelas janelas não entra luz. A casa está triste. Não é esta a casa de que me lembro. Não foi nestas paredes que vivi tão bons momentos… Ou terá sido? Porque está agora tão sem nada? Porque não estás cá agora? A cama vazia, calada, guardando segredos que sei não contará a ninguém. No quadro pendurado na parede, a menina, sinistra, segurando um ramo de flores, continua a fitar o quarto, mas o seu rosto parece mais infeliz do que nunca. Onde foi toda a gente?, parece perguntar-se.

Passeio-me pela casa vazia. Tento agarrar recordações de tardes bem passadas, de palavras que deixámos fugir um ao outro, mas tudo o que resta é ar, espaço. Falta vida, falta gente – faltas tu. Falta sentido, falta risco, faísca. Falta paixão…

É Sexta-feira. Mas não se ouve um sussurro. A casa cala-se, guardando tudo o que lá se passou bem longe dos olhos de quem lá passa, imortalizando os segredos que nunca ninguém descobriu. Olho uma vez mais para trás antes de fechar a porta de entrada. Encho o peito de ar, ganhando coragem. E, como antes, virei costas. Tudo é passado, ó casa vazia…

Inverno

Sentado naquele banco, naquele jardim, já com menos de meio cigarro na mão, chorava. O seu cabelo castanho escuro sobressaía no cenário de Inverno que o rodeava – neve no chão até onde a vista alcançava; a pequena fonte no centro do terreno a jorrar água que por pouco não havia congelado. Essa água, aliás, o único som que se ouvia naquela manhã fria onde o Sol não figurava na paisagem.

O fumo subia, lenta, lentamente da sua boca, percorrendo o ar até desvanecer. O homem via-o pairar à sua frente, bloqueando as serras do horizonte como uma neblina cerrada. O cheiro do tabaco deixava-o nauseado, mas isso pouco lhe importava. Ajudava-o a distanciar-se. Ajudava-o a relaxar…

Distância. Na verdade não precisava de mais distância que a que tinha. Como uma pequena ilha num infindável oceano, não tinha ninguém. E por muitos amigos que tivesse, por muitos que se importassem com ele, sentia-se na mesma só, tão ou mais só do que antes. Talvez porque quisesse. Talvez imageporque, na verdade, ninguém o compreendia ou queria compreender. Sabia-se único – não de uma forma positiva, mas ainda assim, único. Sabia que ninguém via o mundo dele tão bem como sabia que não queria ver aquele mundo dos outros. Detestava as suas perspectivas. Desprezava tantos por as terem… Viam o mundo de olhos fechados. Viam pelo que ouviam da boca dos outros. “Ignorantes…”, dizia para os seus botões.

Gostava de se sentar ali naquelas manhãs gélidas e deixar as lágrimas escorrerem rosto abaixo. Gostava de estar triste. Masoquismo? Quem sabe. Mas para ele o sentimento de tristeza era tão libertador, tão vivo como aquela alegria que nos arranca as maiores gargalhadas, ou como aquele amor que nos põe o pulso a dar horas. Amor que não tinha. Amor que não queria e não podia ter. Por si, ficaria só, apagando todas as outras pessoas, mesmo que mais só do que estava fosse muito provavelmente impossível.

Acabava-se o cigarro. Com um pequeno gesto lançou-o para longe, vendo-o perder a vida em apenas um instante. Encostado para trás, olhos a apontar para o céu repleto de feias e ameaçadoras nuvens cinzentas, deixou-se estar. Perdido. Sozinho. No meio da neve, no meio do branco; como no Céu… Sentia-se estranhamente acolhido, como não era com as pessoas que tantas vezes o rodeavam. Mais só mas mais vivo.

image Tantos sentimentos que não queria ter. Perguntava-se se alguma vez já tinha sido amado. Será que lhe haviam dito a verdade? Muitas vezes duvidava. Outras, menos frequentemente, sentia um certo reconforto em palavras antigas que há muito julgava esquecidas nos recantos das suas memórias. Mas sobretudo cauteloso, controlava o que sentia, açaimava o coração para não sofrer desilusões como tantas até então. Cada uma mais pesada que a outra. Cada uma mais marcante que a anterior. Cicatrizes que se acumulavam atabalhoadamente em si e que não conseguia disfarçar, muito menos ignorar. Por isso se escondia dos outros, por isso se afastava, fugindo para ali. Talvez o vento ouvisse melhor que as pessoas. Talvez a neve curasse mais rápido o que tantas vezes tentara reparar, sem sucesso.

O barulho da água continuava, vindo da fonte. O ar frio percorria-lhe os pulmões, revigorando-o. A cada lufada sentia-se ironicamente mais frio por dentro… “Deixem-me aqui”, dizia para si mesmo, “Deixem-me ser eu”.