segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Murmúrios da cidade

À medida que o Sol desaparece por entre os prédios, apodera-se da cidade a obscuridade. A luz, sem forças, deixa de penetrar em todos os recantos, apagando-se pouco a pouco. Na selva de betão, os carros acumulam-se em longas filas. Dentro deles, todo o tipo de gente, menos o que interessa: gente serena, bem-educada, civilizada. As marcas de calor que se levantam do asfalto são avisos da cidade que já não sabe respirar. Como uma marcha fúnebre, lenta mas certa, a cidade caminha a cada segundo para o caos. image

Agora que os postes de iluminação se acendem, que os néones nos encandeiam com as suas cores berrantes que destoam com a naturalidade da noite, prostitutas aparecem espaçadamente nos passeios da metrópole. Além, vê-se já um sem-abrigo, enrolado nas suas sujas folhas de jornal que alguém deitara fora como lixo, minutos antes. Droga circulava pontualmente, fazendo voar dinheiro que muitas vezes não se tinha. E, não muito longe, soava o alarme de um carro. Vidros partidos, dispersos no chão. O rádio já era! Vultos fugiam como setas até se perderem de vista. Imunda, a cidade ia adormecendo.

As fachadas negras que já ninguém limpava viam o declínio da urbe. Mascaradas pela poluição de anos, a sua beleza minada pelo desleixo de quem vive a sua vida com o pouco tempo que tem, lembram-se apenas vagamente da cidade de outros tempos. Mas as memórias valem o que valem. O tempo tem uma estranha forma de nos impor realidades, permitindo-nos contudo vislumbres do passado… Nas janelas das casas já não se viam estrelas como noutros tempos. Não por que, como pensa o Homem, a cidade brilha como mil e uma estrelas, ofuscando as que tentam competir lá do alto. Não. É antes porque as estrelas partiram. Fugiram de nós que, cegos, somos incapazes de ver a miséria em que caímos.

A lua cheia, conferindo um contorno azulado às formas da rua, adensava o manto arrepiante que se estendia pelos becos e ruelas do coração despedaçado da cidade, enquanto um grupo de rapazes munidos de latas de tinta soltavam as amarras à imaginação e davam outra cor a uma parede velha, meio escondida nos labirínticos caminhos da zona. 

imageE assim se passava a noite, num silêncio perturbador, como se algum segredo estivesse, a qualquer momento, para ser desvendado. Tudo escutava, (até as paredes,) com o ouvido atrás da porta ou de sentidos bem acesos, prestando toda a atenção. Mas, em vez de um murmúrio, ouviu-se o dia, a manhã a despontar, a luz a aproximar-se. Como um aguaceiro que penteia a terra, deixando no ar um odor a mudança, o tímido Sol da alvorada abanou aquela gente. Como morcegos, todos saíam das ruas, escondendo-se dos olhos de quem estivera, até então, com eles cerrados, sonhando com dias melhores e trocando palavras com o travesseiro. Estes últimos iam saindo agora, um a um, como que obedecendo a uma lista de presença, expressamente feita para povoar o dia. A Lua apressava-se para ver a outra metade do globo enquanto o Sol, sempre simpático, se assegurava de que tudo estava igual ali, naquele pontinho do mapa.

E assim corria a vida, no eterno contraste da noite e do dia, do preto e do branco, do certo e do errado, que tantas vezes se perdia em si mesmo, trocando as voltas a tudo e todos e deixando-nos sem saber se aquele preto era mais claro que o outro branco, ou se morrer não será mais certo que viver. Oh, mas não é tempo de pensar nisso! Afinal, o Sol ainda sorri para nós…

Sem comentários: